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Foto do escritorThiago Lima

Brasil: é possível ser uma Nação com fome?

Existem coisas que existem. E existem as coisas que, na realidade, não existem. A terra existe, mas o país não existe. A trabalhadora existe, mas a empresa não existe. Um grupo de pessoas existe, mas uma nação não existe. Ou existe? Embora não seja possível tocar, beliscar ou acariciar o país, a empresa e a nação, há fortes motivos fictícios para acreditarmos – do verbo crer mesmo – que essas coisas existem. São leis, marcas, costumes e tradições que nos fazem crer no que não existe, a ponto de tornarem essas coisas reais. Quando vamos a uma loja, acreditamos estarmos entrando no Magazine tal, e não apenas num prédio de tijolos e vidros. Quando atravessamos uma fronteira, acreditamos estar no estrangeiro, e não apenas do outro lado do rio. E quando encontramos um grupo de estrangeiros, muitas vezes vemos ali uma nação. Como argumenta Yuval Noah Harari, no livro “Sapiens: uma breve história da humanidade”, o que diferencia nossa espécie humana de outras que já existiram, como os neandertais e o homo erectus, é a nossa capacidade de imaginar, de criar ideias altamente abstratas, e de compartilhar toda essa abstração, a ponto de senti-la real. Quando muitas pessoas creem em algo, isso as unifica e as motiva a se comportarem como se aquela coisa de fato existisse. Comportamentos coletivos e de solidariedade que não teriam se a coisa imaginada não existisse. Uma cooperação difusa. O Corinthians, por exemplo, não existe. O que existe são 11 jogadores de preto e branco. E a Fiel Torcida não existe. O que existe é um bando de loucos. Mas a crença no Timão é tão forte que as pessoas fazem loucuras para ver o time jogar. Não é exagero dizer que, infelizmente, alguns matam e morrem por isso. O MST, outro exemplo, não existe. Não se pode atirar no MST. Na verdade, quando alguém atira num grupo de pessoas com a camisa do MST, acaba acertando o Orlando e o Rodrigo, duas pessoas de carne e osso e que acreditavam participar do MST: assim como seus assassinos também acreditavam que estavam mantando MST. E, ao ver homens, mulheres e crianças cantando a plenos pulmões “Vem, lutemos punho erguido; Nossa força nos leva a edificar; Nossa pátria livre e forte; Construída pelo poder popular”, não resta dúvida que, na cabeça deles, o MST existe concretamente. E, existindo o MST, as pessoas, mesmo que não se conheçam, se comportam como militantes do Movimento, assumindo sacrifícios individuais e coletivos em busca de um objetivo comum. Mas, e uma nação? O que é uma Nação? Gosto de uma definição mais ou menos assim: Uma nação é uma comunidade imaginada, na qual os membros compartilham a ideia de um destino comum, e cujos laços de solidariedade são difusos, impessoais. Isso quer dizer que, embora as pessoas não se conheçam pessoalmente, não possuam laços familiares ou de amizade, elas se reconhecem como integrantes de uma comunidade maior. Como tais, estão dispostas a assumirem custos para a realização do seu destino imaginado, almejado, não apenas em benefício próprio ou dos seus conhecidos, mas também em benefício de pessoas que jamais virão a conhecer na vida. É um gaúcho trabalhando por um maranhense. Uma goiana se sacrificando pelo bem da capixaba que jamais verá.


Neste sentido, uma pergunta nos tempos atuais não é trivial: o Brasil é mesmo uma nação? Não tenho mais certeza disso. Os mais de 600 mil mortos pela COVID-19 e a inexistência de uma profunda revolta social me deixam duvidoso. Há provavelmente mais de 20 milhões de brasileiros e brasileiras passando fome, e a vida segue. Dia após dia as pessoas catam lixo para comer, enquanto outros desviam delas em suas caminhadas para manter o condicionamento físico. Onde estão os laços difusos de solidariedade? Onde está a assunção de custos em prol daqueles que não conhecemos? E o destino imaginado? Que tipo de destino imaginado é esse que aceita, como parte da trajetória, conviver com concidadãos sem teto e totalmente marginalizados? Enquanto uns poucos adquirem tantos bens supérfluos de luxo, outras são incapazes de adquirir – ou mesmo de ganhar – absorventes. Que solidariedade seletiva é essa que funciona para uns e deixa outros expostos a todo tipo de abandono? Após este segundo ano pandêmico, reflito que estamos mais desestruturados do que pensávamos. Não é um problema apenas do governo genocida e dos anteriores. Talvez haja um problema maior: a incapacidade de imaginar uma comunidade onde a fome não exista, onde só fica ao relento quem quer. José Américo de Almeida – de quem não sou muito fã – escreveu uma coisa tocante: “Existe uma miséria maior que morrer de fome no deserto; é não ter o que comer na terra de Canaã”. Ora, pelas suas características geográficas, o Brasil é uma Canaã de proporções continentais. Mas temo que o que nos falta é justamente a sensação de sermos um povo em busca de um território onde a fartura não fique concentrada nas mãos de pouquíssimos. Temo que nos falte vislumbrar, concretamente, um destino sem fome: uma Nação que objetive, acima de tudo, alimentar seus filhos e filhas. É papel das lideranças inspirar o povo, mas é também papel do povo conversar e criar ideias, objetivos e imaginar um destino que se alicerce sobre a cidadania e a justiça social. Nada menos do que isso é aceitável se quisermos ser uma Nação. A caridade é importante, mas a solidariedade difusa, transformada em vontade política, é decisiva. Que possamos imaginar e concretizar, aos milhões, um destino desses em 2022. Um destino de dignidade, no qual a Fome não seja uma simples paisagem que se observa ao percorrer a trajetória.



Foto: asservo pessoal. *Coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Fome e Relações Internacionais da UFPB; contato: @fomeri


Publicado originalmente em 23/12/2021 por Brasil de Fato PB


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