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Entrevista: O Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequada com Nayara Côrtes da FIAN Brasil

Atualizado: 23 de jan. de 2020

por Bruno Domingos e Marcelly Marques

Integrantes do FomeRI.


Nayara Côrtes Rocha é assessora de Direitos Humanos na FIAN Brasil, pesquisadora no Observatório de Políticas de Segurança Alimentar e Nutrição da Universidade de Brasília (OPSAN/UnB), mestre em saúde pública pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (2011) e nutricionista graduada na Universidade Federal de Goiás. Prestou consultoria à Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação, FAO/ONU, Brasil (2018) e trabalhou como professora substituta no curso de Nutrição da Universidade de Brasília (2017). Ademais, Nayara desenvolve estudos em Segurança Alimentar e Nutricional, Direito Humano à Alimentação, Educação Popular e promoção de Políticas Públicas na área da saúde.

FomeRI - Sabemos que a senhora é pesquisadora no Observatório de Políticas de Segurança Alimentar e Nutrição da Universidade de Brasília (OPSAN/UnB). Você poderia nos contar um pouco sobre a sua trajetória no programa e como tem sido sua atuação?


Nayara - Sou pesquisadora do OPSAN (Observatório de Política de Segurança Alimentar e Nutrição), desde 2015, quando participei do mesmo projeto que realiza o SISAN[1] Universidade na UFPB, que é um projeto do extinto Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, cuja proposta era que as universidades colaborassem com o fortalecimento do SISAN nos estados. Assim, o Ministério abriu edital e selecionou algumas Universidades como polos regionais e o Observatório ficou responsável pela região centro-oeste. No entanto, Goiás não aderiu, então só trabalhamos com o Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Distrito Federal. O projeto aqui na UnB se chamava RAIS (Rede de Apoio à Implementação do SISAN) e trabalhávamos com dois eixos de ação, basicamente.

O primeiro eixo cuidava mais propriamente do fortalecimento das instâncias do Sistema, apoiando os CONSEAs (Conselhos de Segurança Alimentar e Nutricional) e as CAISANs (Câmara Intersetoriais de Segurança Alimentar e Nutricional), colaborando com o desenho e acompanhamento do Planos, em certa medida fazendo formação, também, mas voltado às necessidades específicas destas instâncias.

O segundo eixo era de formação. Acreditávamos no fortalecimento da temática do direito humano à alimentação adequada e de uma cultura de direitos como caminhos para o fortalecimento do Sistema


A ideia era de que se as pessoas percebessem a alimentação como um direito humano e os fatores determinantes para a realização ou violação desse direito, teriam mais elementos para exigi-lo, de fato.

Como o SISAN é o Sistema que se organiza para realizar esse direito, ele teria maior visibilidade e teria que se fortalecer para responder às demandas populares. Claro que não imaginávamos que a RAIS faria isso sozinha, mas queríamos construir instrumentos que apoiassem a difusão da ideia da alimentação como um direito humano e que estes instrumentos pudessem ser usados por qualquer grupo que tivesse interesse e em qualquer local.

A alimentação é um elemento central na vida das pessoas. Comemos várias vezes ao dia, mas de tão corriqueiro, não refletimos sobre o ato de comer, sobre o que comemos, por que razão comemos da forma como comemos, de onde vêm os alimentos, quais impactos causam na sociedade, no meio ambiente. No máximo, pensamos em alguns impactos sobre a nossa saúde e olhe lá. Acho que de tão óbvio, o direito humano à alimentação e nutrição adequadas se torna invisível.

E aí cabe uma problematização, pois dizer que “comemos várias vezes ao dia” não engloba todo mundo, certo? Todo mundo deveria comer todos os dias, várias vezes, de maneira adequada e saudável, mas isso não acontece. E como não percebemos esse fato como uma violação grave de um direito humano, que, portanto, em última instância é responsabilidade do Estado, não pensamos muito em exigir isso, não lutamos por este direito. No geral, nós que comemos, também o fazemos mecanicamente e estamos alienados dessa ideia do direito. Comemos mal e não pensamos sobre, nem imaginamos outras possibilidades possíveis de se comer de forma adequada, coletivamente. Achamos que é uma questão individual e ponto final.

Então, o objetivo do eixo de formação da RAIS era promover esta reflexão sobre a alimentação e a nutrição como direito humano em contraposição à ideia de caridade. Direito é direito, não caridade.

Nessa linha, queríamos avançar em relação à ideia de comer como uma mera necessidade biológica, como se nutrir o corpo fosse simplesmente uma questão de “parar em pé”, como se fôssemos máquinas que precisam produzir. Quanto mais consciência trazemos para a alimentação e nutrição e o que a envolve, melhor podemos compreender que se trata de um direito humano sem o qual não é possível haver vida digna, mais elementos temos para exigir que todas as pessoas tenham esse direito garantido de maneira ampla e irrestrita.

Bom, mas voltando... Na RAIS, eu trabalhava nos dois eixos, mas era responsável pelo último e nesta coordenação, ficamos responsáveis por produzir um Caderno metodológico para formação de multiplicadores em segurança alimentar e nutricional e direito humano à alimentação adequada. A ideia era ter um instrumento para que as pessoas pudessem, em suas regiões, fazer cursos ou oficinas sobre direito humano à alimentação e nutrição adequadas, sobre segurança alimentar e o SISAN, o Caderno é uma espécie de Guia para isso.

O Projeto Rais funcionou até 2016, sob a coordenação da professora Anelise Rizzolo do OPSAN/UnB e ela saiu para fazer seu pós-doutorado em 2017. Quando retornou, retomamos a ideia de colocar esse Caderno [o Caderno Metodológico], em prática.

Em 2018 organizamos um segundo projeto, agora em formato de extensão popular, que é o Multiplica SAN, em que trabalhamos com formação em soberania e segurança alimentar e nutricional e direito humano à alimentação adequada e saudável. Realizamos duas edições do curso: uma primeira com mulheres do interior de Goiás, na cidade de Colinas, e a segunda na universidade com estudantes de graduação, não só da UnB, mas de outras faculdades do Distrito Federal. E o objetivo é o mesmo: divulgar o direito humano à alimentação adequada e a segurança alimentar e nutricional, trazendo reflexões sobre o comer, o sistema alimentar e outras questões correlatas.

Atualmente, estamos na fase de planejamento da terceira edição do curso que deve acontecer no segundo semestre de 2020 em um assentamento rural perto de Brasília. Neste, temos a pretensão de realizar uma formação ainda mais fiel aos princípios da educação popular, mesmo, aos moldes das propostas de Paulo Freire. O que também nos direciona a reformular o caderno em breve.


FomeRI - Sabe-se hoje que há um aumento generalizado da obesidade e má nutrição, e a correlação entre os temas é algo muito palpável. Assim, em que medida o acesso a alimento nutritivo e de qualidade pode afetar positivamente a saúde de uma determinada população?


Nayara - Nós temos hoje um sistema alimentar que produz obesidade ao mesmo tempo que produz desnutrição porque está voltado para produção de lucro, de capital, e não do direito à alimentação. Ele se volta, prioritariamente, à produção de commodities, o que faz com que produzamos “alimentos” em uma quantidade enorme, capaz de alimentar duas vezes a população mundial, enquanto mais de 820 milhões de pessoas sofrem com fome no mundo, segundo os dados da FAO publicados no relatório SOFI de 2019.

Um sistema alimentar baseado nessa estrutura de produção de commodities não tem como objetivo central produzir alimentos saudáveis, nem alimentar a todas as pessoas. Quando os alimentos são transformados em mercadorias, seguimos uma lógica em que, se você tem dinheiro para comprar você se alimenta, se você não tem dinheiro (ou meios de produzir seu alimento) você tem fome.

Além da transformação do alimento em mercadoria, esse sistema acentua a condição da fome, na medida em que estimula a disputa por terra para a produção desses alimentos-mercadoria. Assim, muitas e muitas populações rurais; povos e comunidades tradicionais, povos indígenas são retirados à força de seus territórios, onde historicamente, produziam alimentos e viviam a vida a partir de seus modos próprios. Quando são arrancados de seus territórios tradicionais perdem o acesso a esses alimentos e formas de se alimentar (e viver) e são jogados nas periferias das cidades onde vão precisar trabalhar para conseguir dinheiro para conseguir comer, quando antes, esta não era uma questão. Então, pode-se considerar que o sistema, da forma como percebemos hoje, também produz fome a partir dessa perspectiva.

Atualmente, várias pesquisas aprofundam a investigação sobre as causas da obesidade, para além da ponta da questão que é o consumo excessivo de alimentos ultraprocessados.

No começo de 2019, The Lancet, uma das Revistas Científicas mais respeitadas da área da saúde lançou dois estudos bem importantes neste sentido. Um deles foi conduzido pelo professor Walter Willett, que há muitos anos estuda obesidade, e agora escreve sobre o assunto a partir da perspectiva do antropoceno. Antropoceno é um termo usado para designar os efeitos que a atividade humana produz sobre o planeta e ele, sabiamente, coloca o sistema alimentar no centro de causas da degradação do planeta. O estudo mostra a quantidade de água e de outros recursos que são usados para produzir esses alimentos que, muitas vezes são produzidos para alimentar animais, para no fim, abastecer um consumo exagerado de carne; padrão criado por esse sistema alimentar. Ou são grãos que irão para a indústria virar alimento ultraprocessado, que também é um padrão criado por esse sistema e que é uma das principais causas da epidemia da obesidade, como já se sabe.

Para o público, em geral, esses alimentos têm um apelo muito grande pela praticidade, preço, publicidade e sabor. Entre si parecem apresentar uma variedade enorme, mas se tratando dos ingredientes - e até de nutrientes - são muito limitados, têm, basicamente, açúcar, farinha, gordura e aditivos químicos. E no final contribuem para os elevados índices de obesidade no mundo todo. Obesidade essa que causa uma diminuição na qualidade de vida das pessoas, aumenta o risco de doenças crônicas não transmissíveis - que são uma das principais causas de morte no mundo hoje. Muitas vezes, a obesidade e a má nutrição estão presentes em um mesmo indivíduo ou na mesma família porque quantidade é diferente de qualidade. Mas a questão é que neste sistema alimentar tem-se um cenário de 2 bilhões de pessoas obesas e 820 milhões de pessoas com fome. Não é razoável.

Um segundo relatório, também do The Lancet, conduzido pelo professor Boyd Swinburn, traz o que ele chamou de “Sindemia Global”. Sindemia é quando três pandemias, ou mais, acontecem ao mesmo tempo e compartilham causas e consequências. No caso da Sindemia Global: a obesidade, a má nutrição e as mudanças climáticas, que, na verdade, são os principais desafios da humanidade atualmente. O futuro depende das condições de superação desses desafios. Se isso não ocorrer, a humanidade não vai conseguir ter vida saudável no planeta em alguns anos. Swinburn levanta dados interessantíssimos, num estudo bastante aprofundado em que se conclui que a principal causa do que ele chama de Sindemia Global é a forma como a humanidade tem se organizado, principalmente, no que diz respeito à produção de alimentos. Vale destacar que os resultados desta Sindemia atingem, primeiro os países e as populações mais vulneráveis.

Assim, para que as pessoas tenham acesso a uma alimentação adequada e saudável, precisa-se - rapidamente - mudar o sistema alimentar. O que, de fato, não é simples, afinal, é uma das maiores forças econômicas do planeta. Ao meu ver, se ocorrer uma superação dessa lógica do sistema alimentar, conseguimos ao mesmo tempo atacar esses três grandes problemas da humanidade. Ademais, uma alimentação adequada e saudável, além de produzir saúde, produz cultura alimentar, produz alimentos de uma forma sustentável e contribui com a biodiversidade.


FomeRI - O CONSEA foi uma instituição de grande importância na pasta sobre Segurança Alimentar e Nutricional desde o governo de Itamar Franco. Para a senhora, o que a extinção do CONSEA representa neste quadro generalizado de retrocesso político e institucional que o Brasil enfrenta atualmente?


Nayara - O CONSEA foi criado pelo governo Itamar, depois extinto no governo FHC, e depois reinstituído no governo Lula. E parte do grupo que formou a sociedade civil do CONSEA estava na luta contra a fome desde os anos 80, 90. Depois teve o fortalecimento dessa luta, que virou a luta por segurança alimentar e nutricional, acompanhando um pouco o movimento de organização para a cúpula mundial da alimentação da FAO que aconteceu em 1996, e que aprimorou bastante o conceito. Mas o fato é que hoje, o conceito oficial de SAN no Brasil, apresentado pela Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (Losan) é ainda mais robusto e complexo do que o da FAO e esta foi uma construção, também, do Consea.

Então, o CONSEA era esse espaço em que os debates sobre segurança alimentar e nutricional podiam acontecer de um jeito mais próximo do ideal possível, com a participação de vários setores, do governo e da sociedade civil. Porque a SAN tem um grande desafio – e é também sua grande riqueza – que é a intersetorialidade, que gente sabe que é um elemento central para várias questões da sociedade, mas não aprendeu a fazer política pública sob esta perspectiva, ainda. O Consea era essa experiência em que todas as pautas se encontravam (agricultura, saúde, educação, economia, direito etc). Contava com representação de movimentos sociais, de agricultores familiares, povos indígenas, povos e comunidades tradicionais, além dos gestores dos diferentes setores do governo. A academia também tinha um papel muito estratégico dentro do CONSEA e todo mundo ali estava, de forma conjunta, olhando para um mesmo problema que apresenta tantas facetas e pensando em formas de solucioná-lo. Considero, então, que a extinção do CONSEA foi uma perda inestimável. É importante lembrar, também, que a atuação do Consea foi fundamental para que o direito à alimentação fosse inserido na Constituição Federal, em 2010.

Organizacionalmente, ele era formado por dois terços da sociedade civil e um terço de representantes do governo. Eram discutidas as demandas da sociedade e as possibilidades de execução do governo juntos. Então tivemos um momento de muito avanço, em que a sociedade que estava desde os anos de 1980 e 1990 na luta contra a fome tinha propostas muito robustas e, se tinha um governo – relativamente – aberto a colocar esforços no tema. Daí os avanços foram positivos, a partir dessa conjuntura. Por exemplo, a proposta do PAA/PNAE (Programa de Aquisição de Alimentos/Programa Nacional de Alimentação Escolar) é uma proposta que nasce no CONSEA.

O PAA é um programa em que o governo adquire alimentos pela compra da produção da Agricultura Familiar sem licitação e distribui nas instituições públicas que oferecem alimentação como escolas, unidades de saúde e de assistência social, presídios, etc. Então, como o PAA/PNAE funciona? Ele estabelece que 30% de toda a alimentação escolar deve ser comprada diretamente da Agricultura Familiar e que, de preferência, que sejam alimentos orgânicos. Dessa forma, ao mesmo tempo, fortalecemos a Agricultura Familiar, que muitas vezes não tem condições para disputar uma licitação com grandes produtores e varejistas e melhoramos a qualidade da alimentação escolar por oferecer mais alimentos in natura, além de reduzir a distância entre quem produz e quem consome, o que melhora a qualidade dos alimentos e reduz o desperdício, a emissão de gases de efeito estufa etc. Atualmente, ainda temos uma alimentação escolar longe do ideal, mas já muito melhor do que anteriormente, quando era baseada em alimentos industrializados. Exigindo 30% de alimentos da agricultura familiar compra-se mais hortaliças e frutas, o que melhora a qualidade da alimentação disponível nas escolas. Essa foi uma proposta que nasceu do CONSEA, que evidencia a capacidade do conselho de olhar para o todo e fazer propostas viáveis e promotoras do direito humano à alimentação adequada.

Em suma, a extinção do CONSEA, assim como o enfraquecimento da pauta de SAN na agenda do governo federal demonstram que a promoção do direito à alimentação e nutrição adequadas não é uma prioridade deste governo. Além de ter sido uma ação completamente autoritária, visto que o Congresso, após muita pressão da sociedade civil organizada, chegou a votar pela reinstituição do Conselho, aprovando uma modificação na medida provisória que o extinguia, o que foi vetado pelo presidente da república. O fechamento desse espaço de construção conjunta entre vários setores e entre governo e sociedade civil é muito simbólico.

Quando se extingue o CONSEA, o SISAN, automaticamente, é enfraquecido, pois parte importante das articulações, propostas e diretrizes para o Sistema eram feitas pelo Conselho. Ou seja, há uma desarticulação completa do Sistema criado para garantir o direito humano à alimentação adequada no país, em um momento em que, ao que tudo indica, a fome e a insegurança alimentar crescem em razão das várias crises por que passamos.

Mas a sociedade civil, comprometida com a luta pelo direito à alimentação independente do governo, está construindo a Conferência Popular de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, que deve acontecer no segundo semestre de 2020, e deve ser seu espaço de organização do segmento para continuar pautando qual a política de soberania e segurança alimentar e nutricional se quer, o que pode ser feito e como isso pode ser construído nesse cenário de retrocesso.


FomeRI - A senhora ocupa o cargo de assessora de Direitos Humanos da FIAN, nesse sentido, qual a importância do alimento nutritivo e de qualidade como um direito humano?


Nayara - O alimento nutritivo, de qualidade, livre de contaminantes, saboroso, adequado cultural e socialmente, produzido de forma sustentável é essencial para o direito humano à alimentação porque sob a perspectiva dos direitos humanos, a dignidade é um elemento primordial. Então, o acesso a qualquer alimento, não necessariamente realiza esse direito.

Na FIAN construímos um conceito de direito humano à alimentação e nutrição adequadas (DHANA), que vem se aprimorando ao longo dos anos, a partir das demandas da sociedade, das mudanças na conjuntura e no sistema alimentar, que contempla tanto os aspectos que envolvem o alimento em si como as formas como ele é produzido, disponibilizado, acessado e consumido. Até o final de janeiro, início de fevereiro, será lançado um módulo de um curso básico de DHANA que aborda todas essas dimensões de maneira mais aprofundada. Esse material estará disponível no site da Fian para todos e todas que se interessarem.

Mas voltando à pergunta, para a Fian, o direito humano à alimentação depende de fatores que ultrapassam o mero acesso a alimentos. Envolve, por exemplo, que esteja disponível, acessível, ou seja, as pessoas precisam ter condições de acessá-lo seja por aquisição física, financeira, ou pelo acesso à terra, semente, água, insumos etc. O alimento precisa ser adequado culturalmente, assim como para a etapa do ciclo de vida que a pessoa está e para sua condição de saúde. E, por fim, tem que ser sustentável, ou seja, esse acesso tem que ser contínuo.

Então, trabalhamos com a ideia de que o direito humano à alimentação e à nutrição adequadas é garantido ou violado a partir da forma como a sociedade se organiza. Ele está, portanto, intimamente relacionado ao sistema alimentar vigente. Como já disse, um sistema alimentar estruturado, prioritariamente na produção de commodities, não necessariamente garante o direito humano à alimentação.

No conceito elaborado pela Fian, incluímos outras dimensões importantes para a realização desse direito. Por exemplo a sigla DHANA inclui a palavra “nutrição” porque achamos essencial politizar também a nutrição. Vivemos um momento em que a obesidade e a fome convivem no mundo em números alarmantes, inaceitáveis para o nível de avanço que a humanidade é capaz de produzir e isso está relacionado ao aspecto nutricional. Em grande medida, as pessoas têm o acesso a alimentos que não nutrem, mas produzem obesidade e doenças crônicas.

Por outro lado, temos algumas “soluções” para a questão nutricional, que são colocadas pela indústria, especialmente, em países da África e da Ásia, obviamente dos países mais pobres dessas regiões, que são os alimentos biofortificados, a suplementação e a transgenia. Como se o problema da desnutrição fosse meramente biológico, enquanto na verdade, ele é social, econômico, ambiental, cultural. Se as pessoas estão com fome é porque não têm acesso financeiro ou físico aos alimentos ou às formas de produzir seus próprios alimentos. Como um alimento com mais tecnologia ou um medicamento (como os suplementos), que portanto é mais caro, vai resolver isso? “Ah, mas a ONU distribui esses alimentos” Por quanto tempo? Essas soluções escondem o problema real que é que o sistema alimentar não está preocupado com as necessidades dos grupos mais vulnerabilizados, esses que não podem comprar alimentos adequados e ao mesmo tempo tiveram seus sistemas alimentares tradicionais destruídos.

Enfim, a meu ver, tentar resolver a questão nutricional sem alimentos é uma contradição inaceitável. Alimento tem que ser nutritivo e adequado e a nutrição tem que ser fornecida via alimentos. É simples. O enfrentamento da fome não pode ser feito, de forma definitiva, sem o fortalecimento dos sistemas alimentares locais justos e sustentáveis. Esta é também a posição do ex-relator da ONU para o direito humano à alimentação adequada, Olivier De Schutter: o direito humano à alimentação adequada só será realizado plenamente com a construção de sistemas alimentares locais justos e sustentáveis.

Uma outra dimensão que nós temos trabalhado é o recorte de gênero. Os direitos humanos estão todos inter-relacionados, então não há direito humano à alimentação se esse recorte não for feito. Pois, no mundo as mulheres são as que mais sofrem com a fome, seja a sua fome ou a de seus filhos ou de sua comunidade. Porque na sociedade patriarcal em que vivemos esse peso cai muito nos ombros das mulheres e isso precisa ser levado em consideração. E, o que vemos também são programas internacionais sobre o tema que não são bem pensados, que já tratam as meninas como futuras mães, ou seja, tira toda a autonomia dessas pessoas de escolher ser o que quiserem. E isso é muito importante de ser evidenciado.

Outra dimensão que trabalhamos, principalmente no contexto brasileiro, é a questão étnica.

O Brasil é um país – extremamente – racista e desigual e é óbvio que todas as mazelas vão se intensificar nas populações que foram historicamente vulnerabilizadas, como a população negra, indígena e povos e comunidades tradicionais.

É preciso evidenciar isso, temos que ter pesquisa e iniciativa política para responder a essa problemática. Por exemplo, a Fian fez uma pesquisa junto a três comunidades do povo Guarani e Kaiowá, no Mato Grosso do Sul em 2013, e obteve um resultado de que 100% das famílias investigadas viviam com algum nível de insegurança alimentar e nutricional. Isso não é ao acaso. Se considerarmos dados das populações negras, tanto de desemprego quanto de renda, veremos o quanto eles são piores e o quanto impactam no modo como esses grupos se alimentam. Dados desagregados também vão apontar que as casas onde as chefes de família são mulheres negras a insegurança alimentar vai estar mais presente do que nas outras. Então, nós precisamos dar uma resposta com muita urgência para isso.

Por fim, outro aspecto central para a realização do Dhana que tem sido reivindicado pela Fian é a soberania alimentar, que quer dizer exatamente isso que eu estava falando sobre quem tem o poder de decidir o que que vai ser plantado, como vai ser plantado e o que que vai ser vendido e no final, quem pode consumir e quem não pode consumir. E isso é uma questão de soberania, acreditamos que quem deve estar no centro do sistema alimentar é o povo. O povo é que deve decidir que semente usar, que alimento cultivar e de que forma, como distribuir e como se alimentar. Quem ocupa esse papel de centralidade da decisão hoje é o mercado.


FomeRI - Nos últimos dias têm se discutido sobre uma PEC que visa colocar o Programa Bolsa Família na Constituição. Como a senhora enxerga essa proposta? Quais efeitos de uma possível institucionalização do Bolsa Família para o posicionamento do Brasil no Mapa da Fome?


Nayara - Essa questão da PEC é importante. Eu acredito que vivemos um momento absurdo, no qual o governo anterior e o parlamento aprovaram uma medida que impõe um teto para os gastos sociais e o atual desmonta o que restava de políticas de segurança alimentar e nutricional, enfraquece as políticas de assistência social, saúde, educação etc.

(...) o Programa Bolsa Família tem uma importância ainda mais fundamental na renda familiar dos grupos mais empobrecidos da sociedade e, consequentemente na condição de segurança alimentar e nutricional desses grupos.

Atualmente, cerca de 12 milhões de pessoas estão desempregadas (fora as que desistiram de buscar emprego que não estão contabilizadas nesse número) e isso, necessariamente, vai afetar o orçamento das famílias e sua capacidade de consumo de alimento. Nesse contexto, o Programa Bolsa Família tem uma importância ainda mais fundamental na renda familiar dos grupos mais empobrecidos da sociedade e, consequentemente na condição de segurança alimentar e nutricional desses grupos.

Assim, temos uma conjuntura de uma economia problemática, de retirada de direitos desde a PEC dos gastos sociais até o enfraquecimento das políticas sociais, aprovação de uma reforma trabalhista que torna as relações de trabalho mais precárias, uma reforma da previdência que dificulta a aposentadoria dos grupos mais vulnerabilizados, sobretudo dos Trabalhadores Rurais e de desmonte das políticas sociais que forneciam amparo para esses grupos. É um conjunto de fatores que aumenta muito os riscos de aumento intenso da insegurança alimentar e nutricional.

O poder legislativo, liderado pelo Rodrigo Maia percebeu essa situação e que algo precisava ser feito, com urgência e fez esta proposta razoável. Acredito que seja um ato bem importante, até porque como dizia o Betinho “quem tem fome tem pressa”. Mas por outro lado, percebemos que esta iniciativa demonstra o completo esfacelamento das políticas de Segurança Alimentar e Nutricional no país. Que dizer, nós tínhamos políticas públicas para responder a estas situações sob diversas dimensões, desde a produção e abastecimento de alimentos até o consumo. Mas está tudo em processo de desmonte, exceto o Bolsa Família. Existem essas duas dimensões da porposta. Mas acredito que é importante, principalmente para essa questão do posicionamento do Brasil do Mapa da Fome. Quem está atento vê que temos uma grande chance de voltar ao mapa da fome. Eles sabem que está muito próximo de acontecer, tem esses dados e essa nova PEC é um ato de emergência para evitar mais esse retrocesso. Na minha opinião, antiético.


FomeRI - Na sua opinião, como nutricionista, qual o papel da Academia, e de cursos como Relações Internacionais para a disseminação do tema da Segurança Alimentar e Nutricional?


Nayara - Eu acredito muito na academia, nas universidades públicas principalmente. A academia não vai mudar o mundo, mas eu acho que ela tem o dever de oferecer subsídios e aportes para que o povo faça as mudanças que são necessárias para vivermos num mundo melhor, mais justo e sustentável. Dessa forma, todos os cursos que se relacionam com segurança alimentar e nutricional, que são muitos, são muito importantes. No caso das Relações Internacionais, principalmente, pois essa discussão acontece no mundo inteiro, cada país vai olhar a partir das suas necessidades. Mas como dito anteriormente, vivemos em um mundo onde o sistema alimentar é a fonte de problemas gravíssimos que vão atingir o mundo inteiro: mudanças climáticas, obesidade, desnutrição, pobreza. Essas questões, que são mais intensificadas nos países mais pobres, respingam também nos países mais ricos do mundo. Nesse sentido, as fronteiras são apenas uma invenção para nos organizarmos, passou da hora de entendermos que estamos todos interligados. O que acontece numa parte do mundo vai necessariamente afetar fortemente em outra, dependendo do que for, no mundo inteiro

Dessa forma, não é razoável estarmos tranquilos com 820 milhões de pessoas com fome no mundo, não é razoável pensarmos que porque elas não estão aqui do nosso lado, podemos ignorar isso. Esse olhar para o todo, pensando geograficamente, política, econômica, ambiental e socialmente é fundamental pois somos um povo único. A vista disso, eu acho que o pessoal das relações internacionais tem mais elementos para este olhar para o todo. Além disso, muito do que acontece, institucionalmente, sobre direitos humanos, sobre o direito à alimentação e à nutrição adequadas começa na ONU que tem o papel de harmonizar as questões internacionais, né?

Acho que quem está olhando para o planeta percebe que temos um problema e que precisamos pensar soluções globais. Os relatores da ONU pelo direito humano à alimentação adequada são geniais. O Olivier de Schutter, inclusive, chama atenção para a questão do sistema alimentar, para o uso de agrotóxicos, para necessidade de termos um sistema de agricultura sustentável, mais saudável para o mundo. Esse olhar é essencial, a questão da fome é uma questão da humanidade, não é de um só país.

Em um momento em que é preciso reafirmar o óbvio de direitos humanos, e que aqui no Brasil várias portas de diálogo dentro do Estado brasileiro foram fechadas, precisamos ampliar nossos diálogos internacionais. Embora em alguns casos, isso já fosse necessário mesmo nos governos anteriores, como no caso guarani-kaiowá, no qual temos conflitos pesados entre os povos indígenas e os proprietários de terra que ocuparam os territórios após os indígenas serem retirados à força. Esses conflitos acontecem há muitos anos sem solução. Nesse sentido, buscamos apoio fora do país, não só no sistema ONU, como também, no sistema Interamericano, na Comissão e na Corte de Direitos Humanos, e assim, conseguimos resoluções importantes que limitam um pouco as ações mais violentas contra esses povos (mas nem sempre).

Aqui na FIAN trabalhamos muito internacionalmente, tanto para a elaboração teórica sobre o tema, junto à FIAN Internacional, principalmente, quanto nas lutas unitárias internacionais, mas também para denúncia de casos de violação contra os direitos humanos, em casos que os interesses internos dos países, às vezes, impedem que os problemas sejam resolvidos, em muitos momentos conseguimos visibilidade, documentos, declarações e petições que auxiliam.

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