Por *Cecília Laís Ferreira da Silva e **Thiago Lima O novo relatório sobre “O Estado de Segurança Alimentar e Nutrição Mundial”, organizado pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), traz números assombrosos sobre a fome no mundo, mesmo após a pandemia de Covid-19. Em 2021, 42,2% da população mundial não tinha condições de pagar por uma alimentação saudável, isto é, mais de 3 bilhões e 139 milhões de pessoas ao redor do globo. Destas, mais de 1 bilhão são do continente africano, mais de 1 bilhão e 900 milhões do continente asiático, e mais de 118 milhões da região latino-americana. O relatório foi dividido em 5 capítulos, que abordam desde a segurança alimentar e a nutrição global até tópicos diretamente ligados com o fenômeno da urbanização, tratando desde a questão da alimentação saudável e seu acesso ao redor do mundo até aspectos dos sistemas agroalimentares. Especificamente, o estudo destaca distinções que a linha entre o rural, o periurbano e o urbano possuem em termos alimentares e, ao final, sugere políticas de superação desses problemas. Trazendo estatísticas e infográficos que focam nos anos de 2019 - 2021, o documento oferece argumentos para as relações entre as centenas de milhões de pessoas que passam fome ao redor do mundo e as circunstâncias e causas por trás disso. De início, uma preocupação latente é o quão distante e desafiador parece ser o cumprimento do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) nº 2: o de erradicação de todos os tipos de fome e má nutrição até 2030, principalmente tendo em mente a assustadora estimativa da FAO de que, nesse mesmo ano, 600 milhões de pessoas ao redor do mundo estarão subnutridas. E, aqui, é importante enfatizar uma afirmação do relatório que bem traduz o principal fator a ser analisado: “Esses números e tendências podem ser uma decepção considerável para nós, mas para as crianças e pessoas afetadas, constituem um fato inerente de suas vidas [...]”. Mas por qual motivo, então, as pessoas de uma determinada localidade do globo tendem a enfrentar as mazelas da fome de forma tão mais grave que em outras regiões? Como entender a desigualdade da fome? O relatório aponta que, no mesmo ano em que 22,7% da população da América Latina e Caribe não tinha condições de pagar por uma alimentação saudável, para a América do Norte e Europa essa proporção chegava a 1,4%, o que é motivo de ânimo, claro, mas ao mesmo tempo motivo de questionamento: Por que duas partes do globo, com números semelhantes em população, possuem tanta diferença no número de famintos? O que uma tem que a outra não tem? Uma resposta para essa pergunta requer primeiramente uma compreensão histórica básica do sistema internacional em que estamos inseridos: a construção da abundância em uma região é normalmente feita em detrimento da imposição da miséria em outras regiões. Não é novidade que as regiões apresentadas pela FAO com maior quantidade de famintos foram, historicamente, palco da brutalidade colonialista e imperialista de países europeus por séculos a fio, aos quais se juntaram, em meados do século XIX, outros membros do chamado Ocidente, principalmente Japão e Estados Unidos. Se hoje há um estado de bem-estar propagado na Europa e América do Norte e o preço de uma alimentação saudável é mais acessível àqueles povos do que, por exemplo, aos latino-americanos, é em grande parte devido a uma condição histórica que impôs a marginalização e o subdesenvolvimento às áreas colonizadas. Falar dos resultados de hoje sem mencionar a trajetória da causa é ser negligente com a formulação de uma solução para o problema da fome nessas regiões. Ou seja: é preciso enfrentar as desigualdades globais atuais sem esquecer suas raízes profundas, algo que muitas vezes é perdido quando se enquadra a fome em termos das metas dos países para alcançar o ODS 2 em 2030. Voltando o foco da narrativa para a região da América Latina, um questionamento é permanente: como a região “celeiro” do mundo não tem condições de prover alimentação de qualidade para seu próprio povo? O relatório analisado traz à tona um problema ainda pouco discutido: as adversidades enfrentadas pela cadeia de suprimento de alimentos frente à urbanização. O fenômeno é explicado no relatório como uma faca de dois gumes: o crescimento das cidades pode facilitar o acesso a alimentos mais nutritivos por meio da facilidade de comunicação logística entre os âmbitos rural e urbano, mas também pode servir de perpetuador das dificuldades encontradas nos grandes centros urbanos, sejam elas os preços inflados dos alimentos ou vícios nocivos nas dietas dos consumidores, como a disseminação em massa de alimentos pouco nutritivos e com grande teor de açúcar e/ou sódio: os ultraprocessados em geral, disponíveis nos supermercados e vendinhas de bairro. Acontece que, tratando-se da região responsável por boa parte das exportações agrícolas do planeta, mas que ainda conta 131 milhões de pessoas (FAO, 2023) sem condições de arcar com os custos de uma dieta saudável, é preciso, além de discutir a urbanização e os seus problemas, debater como as estruturas nacionais e internacionais expulsam, pela fome, pessoas da zona rural para as cidades em pleno “celeiro” do mundo. Uma sugestão dada ao fim do relatório é a implementação de políticas governamentais que atuem multissetorialmente para atingir todas as camadas envolvidas no problema, desde atores importantes na distribuição de alimentos no meio urbano até os atuantes na fase produtiva, no meio rural e periurbano. A alternativa de fato é válida e funcional, como já demonstrada por ações de cunho semelhante pelo programa Fome Zero, implementado em 2003, que através de sua exitosa articulação entre os diversos níveis de poder, contribuiu para alcançarmos os resultados que já conhecemos: a saída do Brasil do Mapa da Fome da FAO. Infelizmente, o Brasil retornou ao mapa após anos de crise econômica, da pandemia e de desmonte sistemático de políticas públicas de segurança alimentar e nutricional. A situação da América Latina como um todo é devastadora, em que pese leve melhoria em alguns países da região no último ano. Por isso, é fundamental que o Brasil e os vizinhos controlem habilmente suas políticas de combate à fome e de sustentação de boas práticas alimentares, e o chamado da FAO para olharmos com atenção para o fenômeno da urbanização, da modificação dos sistemas agroalimentares e da sua relação com o estado de nutrição da população mundial é oportuno – desde que não se esqueça as condições históricas que, há séculos, expulsam as pessoas dos campos para as cidades.
*Cecília Laís Ferreira da Silva é graduanda em Relações Internacionais e integrante do Grupo de Pesquisa sobre Fome e Relações Internacionais (FomeRI) da UFPB. **Thiago Lima é Professor do Departamento de Relações Internacionais e coordenador FomeRI
Publicado originalmente em https://www.brasildefatopb.com.br/2023/08/02/o-novo-relatorio-de-seguranca-alimentar-e-nutricao-mundial-da-fao-e-a-fome-latino-americana
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