Documento de 43 cientistas recomenda abordagem unificada para os três problemas com ênfase na produção de alimentos.
FÁBIO DE CASTRO, originalmente publicado em Direto da Ciência.
Em um novo relatório publicado na revista científica médica Lancet, um grupo de pesquisadores aponta que as mudanças climáticas, a obesidade e a desnutrição têm causas tão interconectadas que devem ser enfrentadas como um só problema. E recomenda uma mudança radical em todo o sistema de produção de alimentos que, segundo os cientistas, favorece lucros privados em detrimento da saúde.
Os 43 autores do relatório atuam em áreas como pesquisa clínica, ciências climáticas e saúde pública. Segundo eles, a obesidade, a desnutrição e as mudanças climáticas são três pandemias tão interconectadas que, em conjunto, podem ser definidas como uma “sindemia global”.
No documento, o termo “sindemia” foi adotado pelos autores como “duas ou mais pandemias que ocorrem simultaneamente, interagem entre si e são produzidas pelos mesmos fatores sociais ou econômicos”.
Efeitos em cascata
No relatório, publicado em 27 de janeiro, a Comissão da Lancet sobre Obesidade faz um apelo “por repensar radicalmente os modelos de negócios, sistemas alimentares, engajamento da sociedade civil e da governança nacional e internacional para enfrentar a sindemia global de obesidade, desnutrição e mudanças climáticas”.
Os autores explicam que os eventos climáticos extremos produzidos pelas mudanças climáticas têm efeitos em cascata sobre a saúde humana.
“Reconhecemos que a desnutrição e a obesidade estão associadas às mudanças climáticas, especialmente como resultado da produção agrícola”, disse um dos autores do relatório, William Dietz, da Universidade de Washington, nos Estados Unidos.
“Por exemplo, a produção de carne gera muitos gases de efeito estufa, o que agrava as mudanças climáticas e os eventos catastróficos, com efeitos negativos na agricultura, o que acaba contribuindo para a má nutrição, levando à obesidade ou desnutrição”, afirmou Dietz.
Mundo corporativo
Segundo os autores, como o sistema alimentar globalizado é responsável por 20% das emissões de gases de efeito estufa e, ao mesmo tempo, é uma das causas da obesidade e da desnutrição, reformas nesse sistema podem mitigar os três problemas simultaneamente.
As propostas incluem elevar impostos sobre a carne vermelha e criar um tratado internacional com foco nas empresas multinacionais de alimentos, semelhante à convenção da Organização Mundial da Saúde sobre o controle de tabaco.
Mas o principal é uma reforma radical no mundo corporativo. De acordo com os autores, os lobbies das grandes empresas exercem sua influência em legisladores e distorcem as políticas públicas voltadas para os fabricantes de comida processada e as empresas de fast food.
O relatório, que apresenta o negócio da alimentação como “o motor da sindemia global”, descreve como os sistemas econômicos e políticos permitem que as empresas privatizem os lucros e socializem os custos das pandemias.
Mudar as regras do jogo
“O relatório aponta que a atual regra do jogo do mercado não está funcionando e que precisamos urgentemente agir em relação a isso”, disse a socióloga brasileira Paula Johns, diretora-presidente da organização ACT Promoção da Saúde, que acompanhou o lançamento do relatório, realizado na Tailândia, em 27 de janeiro.
Paula sugere que o poder público deveria mudar as regras do jogo para que as empresas incorporem nos preços de seus produtos os impactos negativos sobre o meio ambiente e a saúde, reduzindo assim seus impactos.
“No Brasil, só para começar, precisamos urgentemente acabar com os subsídios para refrigerantes na Zona Franca de Manaus. E precisamos mudar as regras para que as externalidades dos produtos façam parte da composição do preço final”, disse Paula.
Segundo ela, cabe ao poder público dos países executar essas iniciativas, buscando um tratado global e levando essas demandas para os fóruns multilaterais. A sociedade civil, por sua vez, tem o papel de pressionar o governo e chamar atenção para a importância do tema.
“No caso das empresas, o relatório é bem contundente em dizer que elas não devem participar da formulação de políticas públicas, que, no caso de multinacionais de ultraprocessados e outras do atual sistema alimentar, é que estão causando o problema”, disse Paula.
Segundo ela, durante o lançamento do relatório, vários especialistas comentaram que, se as empresas querem ser parte da solução, elas deveriam parar de investir milhões em lobbies para impedir a implementação de políticas públicas efetivas.
“Não estou dizendo que as empresas são más, mas elas também são parte de um sistema que hoje premia práticas que são nocivas para todos – o que ficou evidente no colapso da barragem de Brumadinho e em tantas outras tragédias anunciadas pelas práticas e políticas das grandes corporações que fazem qualquer negócio para permanecer competitivas. Não podemos permitir um mercado onde o lucro seja mais importante do que a saúde das pessoas e do planeta”, disse Paula.
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