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A FAO sob liderança chinesa: a comida como indicador da ordem liberal internacional?


A escolha do chinês Qu Dongyu para o cargo de diretor geral da FAO pode fazer desta organização um ponto privilegiado de observação da estratégia geral da China para as relações internacionais. Embora o cargo de diretor seja uma posição institucional e, portanto, não corresponda ao mandato de um país, sabe-se que o diretor geral da organização possui espaço para estabelecer prioridades e privilegiar algumas agendas. O brasileiro José Graziano da Silva, por exemplo, buscou difundir políticas que ressoavam experiências brasileiras, como o Programa de Aquisição de Alimentos, enquanto ocupou o cargo de diretor geral da FAO. No mesmo sentido, durante o período de Graziano observou-se uma agenda mais receptiva a políticas e práticas que visavam o desenvolvimento local e regional adequados às peculiaridades/características dos países em desenvolvimento no que concerne a questão alimentar. Isto, contudo, não significou que a FAO tenha modificado sua orientação geral de advogar a industrialização da agricultura como forma de aumentar a produção e a produtividade, nem a liberalização econômica internacional como método para ampliar a oferta de alimentos, os investimentos no setor agrícola e, em última instância, o combate à fome.

O fato é que a China, diferentemente do Brasil, é uma grande potência que caminha a passos largos para o topo da hierarquia de poder internacional. Nessas condições, cresce a expectativa sobre se a China buscará desempenhar um papel hegemônico, no sentido de disputar, pelas ideias, a primazia sobre como a sociedade global deverá se organizar para superar seus problemas. A liderança de Qu Dongyu dará indícios da atuação da China como potência revisora ou mantenedora de uma ordem econômica internacional liberalizante?

Ao longo de uma história milenar a China sofreu com longos períodos de fome e carestia, inclusive impostas por influências invasoras e por conflitos, que deixaram marcas profundas na sociedade. De fato, a questão da alimentação é pilar de sustentação do Partido Comunista, que assumiu como missão fundamental superar esse flagelo. Ao retirar mais de 600 milhões de chineses da condição de miséria nos últimos 30 anos, criou-se também a necessidade de se alimentar esta população distribuída nas áreas rurais e urbanas. Para isso, a China possui uma doutrina nacional de autossuficiência na produção de alimentos básicos. Consequentemente, fomenta o desenvolvimento da produção nacional e possui estoques estratégicos de alimentos dentro e fora das suas fronteiras, seja para consumo próprio, seja como facilitadores logísticos para plataformas exportadoras. Por outro lado, a China investe intensivamente no desenvolvimento da produção e da logística para exportação de alimentos em outros países mirando alguns objetivos, a saber: criar uma fonte confiável para importar parte dos alimentos que necessita para compor sua oferta interna; baratear os preços internacionais; e investir seu capital num setor promissor. Há, ainda, um elemento crucial para a conjuntura chinesa atual: ao obter fontes de fornecimento que possam reduzir ou manter o custo de produção doméstica, seja de alimentos seja de insumos produtivos, o governo chinês mantém o poder de compra do trabalhador e segura um eventual impacto inflacionário. Contudo, para que essa dinâmica funcione, é preciso que vigore uma ordem econômica internacional predominantemente liberal, ou seja, baseada no livre fluxo de capital e de mercadorias no mercado internacional.

Há aí um potencial paradoxo: a China irá utilizar o mandato de Qu Dongyu para difundir internacionalmente uma política de autossuficiência como melhor método para alimentar as nações, espelhando sua própria doutrina nacional, ou irá sustentar o tradicional discurso da FAO de que a segurança alimentar é mais facilmente alcançada quando o livre-comércio oportuniza maior oferta de alimentos, a preços mais baixos, por meio da competição internacional?

Note-se que todas as grandes potências adotam, direta ou indiretamente, uma política de autossuficiência alimentar para produtos básicos e que todas elas são – quando a geografia permite – grandes exportadoras de alimentos. Resulta disso uma grande hipocrisia uma vez que grandes potências tendem a adotar medidas protecionistas relacionadas ao setor agroalimentar enquanto recomendam, simultaneamente, via uma retórica liberal que norteia as organizações internacionais, políticas como a privatização de estoques reguladores e o não controle de preços.

De fato, a China não toma decisões alinhadas ou alinhando-se com as potências tradicionais: EUA, União Europeia e Japão. Beijing tem uma forma própria de pensar as instituições internacionais, seu papel e sua utilidade. Aceita e reforça a ordem econômica internacional liberal quando é do seu interesse, do mesmo modo que pratica políticas não liberais conforme seus objetivos, vide a proibição da venda da terra e a própria política de autossuficiência alimentar. É neste sentido que a ascensão de um chinês ao comando da FAO permitirá observar se a China será uma grande potência normal – defensora do status quo – ou se proporá ao mundo uma forma alternativa de solucionar talvez o principal flagelo histórico da humanidade: a fome.


Alexandre C. C. Leite e Thiago Lima são professores do Programa de Pós-Graduação em Gestão Pública e Cooperação Internacional da UFPB.


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