Foto: Reuters/Carlos García Rawlins
Por Cecília Laís Ferreira da Silva
Tornou-se comum tratar a fome como cotidiana, como uma tragédia que nos acomete por ser um fenômeno natural, normal e irrefreável, e não como o que ela realmente é em nossos dias: um negócio. É a partir deste ponto crucial que o relatório "O Negócio da fome na América Latina” de fevereiro de 2023 da ONG europeia Grain se propõe a discutir a fome na região “celeiro” do mundo e quem lucra com ela. Concentração da produção, do processamento e da distribuição de alimentos; lucros recordes; influências na política regional e até mesmo manipulações no mercado financeiro são parte da sistemática de funcionamento do conglomerado de gigantes comercializadoras do ramo agroalimentar.
O relatório explana um exaustivo estudo sobre a relação entre a fome dos latino-americanos, os lucros bilionários envolvidos nesse processo, quem participa desses lucros e como eles são obtidos. Ao longo do artigo são pautados tópicos e dados de ordem social e econômica e os argumentos e os fatos tratados em todo o artigo nos levam a pensar a fome, e suas milhões de vítimas, de uma nova maneira, apontando causas e efeitos que explicam o porquê de ainda haverem tantos famintos.
O Brasil, um país símbolo do agro e maior exportador mundial de soja, possui hoje cerca de 58,7% (Rede PENSSAN, 2022) de sua população em algum grau de insegurança alimentar (leve, moderada ou grave), ao mesmo tempo em que registrou, em 2021, um aumento de 35% no faturamento de corporações do agronegócio. A história de muitas terras nas mãos de poucos é a narrativa que explica parte do porquê de haver tanta fome não só no Brasil como em toda a região da América Latina: grandes latifúndios dominando a maior parte das áreas cultiváveis da região são uma constante desses países há séculos. O relatório vai ainda mais fundo e explica que o problema não se restringe apenas a isso. Uma série de fatores como negligência e sabotamento dos mecanismos de agricultura familiar e camponesa, o instigo governamental e internacional a redes de grandes supermercados e indústrias de ultraprocessados são outras nuances que devem ser exploradas.
O mercado agroalimentar é quase que completamente dominado por algumas poucas corporações que possuem controle desde a etapa da produção do alimento (em suas bases agrícolas) até suas etapas de distribuição. Gigantes agrícolas, como as comercializadoras Cargill, Bayer e ADM, possuem um monopólio que as garante um lucro em triplo através da manipulação dos preços dos produtores, da venda de commodities em câmbio alterado e da subida nos preços internacionais. O relatório aponta ainda que a infiltração dessas empresas na América Latina também é histórica; a chamada “Revolução Verde”, das décadas de 60 e 70, trouxe consigo não apenas pesticidas e novas sementes, mas também a desculpa perfeita para a chamada “Guerra contra a fome”, empreendida pelos EUA. Guerra essa que nada mais foi do que o financiamento da entrada dessas empresas no mercado latino e, posteriormente, do controle sobre uma grande parcela de sua cadeia de produção alimentar.
Ademais, também é levantada a questão do papel dos governos regionais na manutenção desses oligopólios. Os chamados pacotes de ajuda a agropecuária, muito difundidos em meio à crise atual, são uma forma de definir e explicar do que se trata o que o relatório sabiamente denominou de “obra pública”, que desestabiliza a soberania alimentar na América Latina. Acontece que esses pacotes não são fornecidos de forma equitativa; a prestação de certos privilégios fiscais e financeiros como subsídios e créditos rurais, ofertados pela mão do Estado, são quase que integralmente destinados a grandes produtores agrícolas, deixando a agricultura familiar, camponesa e minifundiária de lado e consequentemente afetando toda uma rede de consumidores e produtores de menor escala (e renda).
Importante ressaltar os fatores histórico e social, tão bem levantados no relatório, pois é a partir desses que se consegue ter uma dimensão melhor de como os números da fome chegam a níveis tão vergonhosos e como possuem uma relação tão profunda com questões mercadológicas e internacionais. Ao passo em que 4 a cada 10 latinos estão em insegurança alimentar grave ou moderada, 4 das maiores corporações de sementes e pesticidas tiveram o dobro de seu faturamento nos últimos 5 anos. Em outras palavras, não é coincidência o fato das duas taxas aumentarem juntas tão exponencialmente; uma possibilita a existência da outra.
Os lucros na casa dos 445 bilhões de dólares alcançados em 2020 por grandes processadoras de alimentos como a Nestlé, Coca-Cola e Pepsico são também um claro exemplo de como essa indústria adquire seu espaço no mercado esmagando um desenvolvimento e maior circulação de produtos de fato frescos e saudáveis, como são os derivados da agricultura familiar e regional. A subida nos preços desses alimentos, que são comercializados em feiras locais e seus circuitos comerciais afins, é reflexo de uma série de circunstâncias impostas pelo mercado que dão ainda mais força às grandes redes de supermercados e varejistas ao passo que tomam recursos, demanda e espaço dos alimentos de produção direta.
Exemplo prático disso mencionado no relatório foi a situação vivenciada durante a pandemia da covid-19, em que as grandes redes de supermercado e seus produtos ultraprocessados e prejudiciais foram considerados “essenciais”, ao mesmo tempo que as feiras, com produtos de pequenos e médios produtores e livres de boa parte das substâncias maléficas da indústria, foram criminalizadas.
O consumo de ultraprocessados, de acesso mais barateado, é altamente prejudicial à saúde e tende a afetar justamente os que possuem uma renda mais baixa, isto é, a população pobre. No Brasil de 2019, morreram mais vítimas precoces por consumo de ultraprocessados (57 mil) do que morreram vítimas de homicídio. Outro dado assustador e que demonstra o quão fundo o problema consegue ir, são os números de vendas diárias de ultraprocessados na América Latina: de 2000 a 2014 as vendas tiveram um aumento de 726%, representando um salto de 53 kg/dia para mais de 440 kg/dia.
Mercantilizar a fome é o carro-chefe das corporações bilionárias que lucram com a má distribuição de alimentos e com a venda de produtos que mais envenenam do que nutrem a população. Os aspectos sociais, econômicos e também morais de toda uma população são duramente prejudicados com o negócio da fome. A soberania alimentar latino-americana encontra-se em risco devido às práticas mercadológicas dominantes e de uma parcela minúscula de grandes detentores de capital que engordam os bolsos às custas dos que passam fome. O relatório da Grain nos deixa cientes da raiz do problema. Resta-nos agora saber lutar e esperançar por uma América Latina de pratos cheios.
Cecília Laís
Graduanda de Relações Internacionais na Universidade Federal da Paraíba. Membro do Grupo de Pesquisa sobre Fome e Relações Internacionais da UFPB (fomeri.org).
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